Muito antes do termo startup se tornar popular, tive a oportunidade de acompanhar o crescimento da AltoQi, de uma pequena empresa de software de Florianópolis para sua transformação em um dos expoentes da indústria de software nacional.
O ano era 1994, os primeiros aparelhos celulares tinham sido recém-lançados, o lançamento comercial da Internet no Brasil e no mundo ainda estava engatinhando e eu começava minha jornada na AltoQi como estagiário de engenharia civil.
De lá para cá, foram quase três décadas de dedicação à AltoQi, muitos aprendizados, desafios e produtos desenvolvidos. Por isso, coube a mim contar um pouco dessa história e dos desafios que conseguimos superar ao longo do caminho.
Eu não estava presente na fundação da AltoQi ou no desenvolvimento dos seus primeiros produtos, a “linha PRO” para Engenharia, mas fui o primeiro engenheiro contratado pela empresa para realizar o atendimento aos seus clientes.
A empresa não tinha mais do que 15 pessoas no total, mas já tinha encontrado seu nicho no mercado de software para projeto estrutural, dominado na época por uma aplicação já bem consolidada, o TQS. A AltoQi fornecia, especialmente com o seu produto ProViga, uma alternativa mais acessível aos profissionais de projeto.
Produtos da linha Pro
Os desafios de um mercado em disrupção
Esse cenário de mercado mudou rapidamente nessa época, com a entrada do Cypecad, um software espanhol representado no Brasil pela empresa Multiplus.
Embora esse produto carecesse de adequação ao nosso mercado nacional, não apenas em aspectos normativos, mas especialmente na geração dos detalhamentos e até mesmo na terminologia de projeto utilizada, trazia uma proposta que soava revolucionária na época.
O software trazia um ambiente de lançamento totalmente gráfico e um modelo de análise espacial integrada, utilizando o Método dos Elementos Finitos.
De uma hora para outra, como resultado de um esforço de marketing bastante agressivo por parte da Multiplus, as aplicações que trabalhavam com elementos isolados (como a Linha Pro da AltoQi) se tornaram obsoletas.
Nesse momento, observando a disrupção que tinha ocorrido no mercado, os fundadores da AltoQi tomaram uma decisão arriscada, mas fundamental: parar completamente o investimento no desenvolvimento de melhorias para a Linha Pro e iniciar o projeto de um novo software que integrasse os produtos individuais da época (vigas, lajes, pilares e fundações) e ainda tivesse o seu próprio ambiente de entrada de dados gráfica.
Para isso, puderam contar com uma pequena equipe (eu e quatro desenvolvedores, na maior parte recém-formados), que teve que ser sustentada pelo negócio da Linha Pro até que pudesse gerar um novo produto.
Foto da equipe - André Gustavo Mendonça, Adriano Coser, André Banki, Marco Aurélio Melo e Fernando Schauffert Portela Gonçalves
O desafio era enorme. A distância entre o ponto em que estávamos e a proposta trazida pelo Cypecad era muito grande, sendo inviável construir todos os mesmos recursos de software com a equipe que tínhamos, em um prazo que fosse viável para a empresa.
Aqui foi onde entrou o que se costuma abordar como Inovação, mas que prefiro chamar de Criatividade. Cabe lembrar que tanto inovação como criatividade não significam invenção. Afinal, o que queríamos construir não era exatamente novidade no mercado.
A Criatividade é a capacidade humana de pensar em soluções diferentes para um desafio, que foi o que precisamos exercer. Ela surge ao olhar para um problema e pensar fora da caixa para resolvê-lo de modo diferente. Está bastante relacionada com a necessidade de atingir um desafio tendo recursos limitados para tal.
O resultado obtido pela aplicação da criatividade sobre um desafio é que consiste em uma solução inovadora.
“A Criatividade é a capacidade humana de pensar em soluções diferentes para um desafio”
Um outro aspecto da época que conseguimos aproveitar foi a popularização do Windows, então na sua versão 3.11 de 16 bits. Tanto a Linha Pro como TQS e Cypecad eram aplicações que rodavam no ambiente MS-DOS.
Como estávamos começando um produto novo, identificamos que esse era o futuro do mercado e já conseguimos direcionar nossos esforços diretamente para ele. Nosso objetivo era construir a primeira aplicação nacional para projeto estrutural que fosse baseada em Windows. Esse aspecto de inovação foi um dos propulsores que impulsionou nossa proposta em relação aos produtos concorrentes.
Do que a empresa tinha desenvolvido na Linha Pro, aproveitamos os algoritmos de dimensionamento, que já atendiam aos critérios da Norma e, especialmente, os algoritmos de geração de detalhamentos de vigas, pilares e fundações, cuja qualidade segue sendo um dos diferenciais da AltoQi.
A parte das lajes teria que ser completamente diferente, pois queríamos uma entrada de dados gráfica. Desenvolvemos essa entrada gráfica do zero, criando uma base de CAD própria e sobre ela o conceito de “elementos inteligentes” que representavam pilares (elementos pontuais), vigas (elementos lineares) e lajes (elementos de superfície).
Cabe destacar que a nossa solução não copiou nenhuma das existentes. Não era igual à do TQS ou à do Cypecad, mas sim a nossa interpretação do que seria uma forma produtiva de modelar uma edificação. Posso dizer que essa postura sempre foi um diferencial da AltoQi ao longo dos anos e que nos fez sempre se destacar no aspecto de usabilidade das soluções.
Diferente do TQS da época, que possuía a opção de modelos integrados, mas tinha o grosso da sua base de clientes usando as soluções baseadas em elementos isolados, optamos por apostar todas as fichas no modelo de análise via Pórtico Espacial.
Naquela época, atacar um problema como esse era muito diferente do que pode ser feito hoje, onde o conhecimento do mundo inteiro está à disposição de todos através da Internet. Os algoritmos e a teoria por trás deles tinham que ser estudados em livros físicos, como o GERE & WEAVER (1980), que foi meu companheiro por muitos anos de desenvolvimento do Eberick.
Um dos livros utilizados pela equipe para desenvolvimento do Eberick.
O ambiente de entrada gráfica foi concebido para otimizar a produtividade na modelagem da estrutura usando essa abordagem. Isso se mostrou bastante desafiador nos primeiros anos da empresa, visto que as práticas de projeto da época eram muito mais simplificadas e os engenheiros não estavam habituados a avaliar os resultados obtidos por métodos mais avançados de análise, mas essa posição de vanguarda rendeu frutos com o tempo.
Nasce o AltoQi Eberick
Os anos de 1995 e 1996 foram críticos, com a pressão do mercado que tinha sido trazida pelo Cypecad. As primeiras versões do produto que foi batizado AltoQi Eberick, liberadas como “Beta”, tiveram basicamente o objetivo de mostrar aos nossos clientes que estávamos trabalhando em novidades importantes e que não iríamos ficar para trás.
A Versão 1.0 do Eberick foi lançada em abril de 1997, iniciando efetivamente uma nova história para a AltoQi.
Interface da versão 1.0 do Eberick
A primeira versão do nosso produto era limitada a lajes retangulares e edificações de pequeno porte, mas era uma solução completa que, para esse perfil de edificação, permitia:
- o lançamento gráfico sobre uma planta arquitetônica em DXF;
- a análise da estrutura via Pórtico Espacial;
- o dimensionamento dos elementos segundo a norma NBR 6118 e
- a geração de detalhamentos finais com a qualidade AltoQi.
Essa versão demonstrava bem o conceito de MVP (Minimum Viable Product, ou Produto Mínimo Viável), focando nas funcionalidades essenciais para entregar a proposta de valor que estávamos trazendo ao mercado. Com esse produto, que já começou a dar resultados comerciais para a empresa, pudemos continuar o investimento nas versões seguintes.
Contudo, os produtos concorrentes ainda possuíam muito mais funcionalidades do que o nosso. O que trazíamos para o mercado era uma proposta de maior produtividade, enquanto continuávamos trabalhando para acrescentar funcionalidades relevantes para o nosso público.
O Eberick ganhou “corpo” em 1998, menos de um ano após seu lançamento. Neste ano o software apresentou:
- o desenvolvimento da versão em 32 bits (que garantia uma performance muito superior);
- a consideração automática das ações do vento (que eram uma limitação importante no porte das edificações que podiam ser atendidas) e
- a criação do AltoQi Formas, para geração automatizada de plantas de forma, plantas de locação e cortes sobre a estrutura.
O Eberick foi o primeiro software nacional de projeto de estrutural a automatizar a geração de um corte da estrutura como um todo, englobando todos os pavimentos, em qualquer posição escolhida pelo usuário.
Corte geral sobre a estrutura no AltoQi Eberick 2000
Esse foco na geração rápida de detalhamentos de qualidade era o que nos fazia ser competitivos no mercado, mesmo com um menor número de recursos se comparado aos concorrentes.
Até o ano 2000 continuamos trabalhando em melhorias que resultaram na versão icônica para a época, o “Eberick 2000”. O principal recurso dessa versão era o Pórtico 3D, uma representação tridimensional dos elementos modelados no programa, gerada a partir do “croqui” de lançamento dos elementos.
Pórtico 3D no Eberick 2000
Mais de 20 anos atrás, já tínhamos um produto que representava de forma realista os componentes da estrutura de uma edificação através de elementos que não eram simples desenhos 3D, mas sim objetos inteligentes que possuíam as informações especificas de projeto das vigas, lajes e pilares que representavam. Objetos que modelavam a informação da construção, prenúncio do que hoje conhecemos como BIM.
Expansão comercial e perspectivas para os próximos passos
A aposta que os fundadores da AltoQi fizeram no Eberick rendeu frutos. Entre 1995 e 2000, vimos a nossa base de clientes subir de cerca de 700 para 4.500, criamos uma equipe de Suporte Técnico para atendimento online de toda essa base de clientes e participávamos de eventos em todo o Brasil para divulgação das nossas soluções.
Vídeo demonstrativo da versão 2000 do AltoQi Eberick
Ainda existia muito a crescer no mercado de projeto estrutural. Em termos de funcionalidades, o caminho que ainda tínhamos a percorrer para alcançar o TQS era bastante extenso, mas, ao invés de investirmos esforços apenas nessa corrida pelo mercado de projeto estrutural, tomamos uma decisão importante, que determinaria novamente o rumo da empresa:
Expandir nossa atuação para o mercado de Projetos de Engenharia como um todo, começando pela linha de instalações hidrossanitárias. Essa é história que contarei no próximo artigo.